terça-feira, 27 de julho de 2010

Direito à raiva.


Hoje vou postar um trecho de um livro que eu amo.
Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire.

O trecho que escolhi retrata a personalidade de Paulo Freire, mais que um alfabetizador,um professor, um educador, um filosofo, Paulo Freire foi um verdadeiro gênio da educação, suas palavras transbordavam de significados e de luta pela humanidade.

Como Freire, também acredito na luta, acredito na mudança do estado das coisas, mudança esta que nunca virá através da acomodação. Me revolto sim, mas consciente da verdadeira causa pela qual estou me revoltando, não me deixarei cegar por ideologias das classes dominantes. E como Freire, serei sempre humanista, me revoltarei sempre, contra o capitalismo e as idéias neoliberais e lutarei em pró da mudança social.

Livro: Pedagogia da Autonomia.


"Enquanto andavamos pelas ruas daquele mundo maltratado e ofendido eu ia me lembrando da experiência de minha juventude em outras favelas de Olinda ou do Recife, dos meus diálogos com favelados e faveladas de alma rasgada. Tropeçando na dor humana, nós nos perguntávamos em torno de um sem-numero de problemas. Que fazer, enquanto educadores, trabalhando num contexto assim? Há mesmo o que fazer? Que precisamos nós, os chamados educadores, saber para viabilizar até mesmo os nossos primeiros encontros com mulheres, homens e crianças cuja humanidade vem sendo negada e traída, cuja existência vem sendo esmagada?

Paramos no meio de um pontilhão estreito que possibilita a travessia da favela para uma parte menos maltratada do bairro popular. Olhavamos de cima um braço de rio poluído, sem vida, cuja lama, e não agua, empapa os mocambos nela quase mergulhados. "Mais além do mocambos", me disse Denilson, "há algo pior: um grande terreno onde se faz o deposito de lixo público. Os moradores de toda essa redondeza "pesquisam" no lixo o que comer, o que vestir, o que mantenha vivos". Foi esse horrendo aterro, que há dois anos, uma família retirou de lixo hospitalar pedaços de seio amputado com que preparou seu almoço domingueiro...

É possível que a noticia tenha provocado em pragmáticos neoliberais sua reação habitual e fatalista sempre em favor dos poderosos. "É triste, mas, que fazer? A realidade é mesmo esta". A realidade, porém, não é inexoravelmente esta. Está sendo esta como poderia ser outra e é para que seja outra que precisamos, os progressistas, lutar.

Eu me sentiria mais do que triste, desolado e sem achar sentido para minha presença no mundo, se fortes e indestrutiveis razões me convencessem que a existência humana se dá no domínio da determinação. Domínio em que dificilmente se poderia falar de opções, de decisão, de liberdade, de ética.

"Que fazer? A realidade é assim mesmo", seria o discurso universal. Discurso monótono, repetitivo, como a própria existência humana. Numa história assim determinada, as posições rebeldes não têm como tornar-se revolucionárias.

Tenho o direito de ter raiva, de manifesta-la, de te-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de te-lo como motivação de minha briga porque, histórico, vivo a história como tempo de possibilidade e não de determinação. Se a realidade fosse assim porque estivesse dito que assim teria de ser não haveria se quer por que ter raiva. Meu direto à raiva pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo pré-dado, mas um desafio, um problema.

Meu direito a raiva pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo pré-dado, mas um desafio, um problema. A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de "ser mais" inscrito na natureza dos seres humanos. Não posso, por isso, cruzar os braços fatalistamente diante da miséria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no discurso cínico e "morno", que fala sobre a impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim.

O discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio imposto de que resulta a imobilidade dos silenciados, o discurso do elogio da adaptação tornada como fado ou sina é um discurso negador da humanização de cuja responsabilidade não podemos nos eximir.

A adaptação a situações negadoras da humanização só pode ser aceita como consequência da experiência dominadora, ou como exercício de resistência, como tática na luta política.

Dou a impressão de que aceito hoje a condição de silenciado para bem lutar, quando puder, contra a negação de mim mesmo..."


Freire, P., Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Paz e Terra, cap. 2 , pg 74 a 76, 1996.





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