sábado, 18 de setembro de 2010

Ensinar a Ler e Escrever


Este estudo de caso se refere a uma antiga aluna, que eu atendia em minhas aulas particulares, não irei revelar o nome desta minha aluna, no lugar do nome irei usar um pseudônimo, irei chamar essa minha aluna de Maria.


Estudo de caso sobre as dificuldades de Maria:

Quando comecei a dar aulas para Maria ela tinha 7 anos de idade e estudava na 1ª série de uma escola pública, nesta época o ensino ainda era seriado e ainda existia as classes de alfabetização.

Maria já tinha passado pela classe de alfabetização, porém Maria não sabia ler e escrever, escrevia seu primeiro nome e fazia cópias do quadro negro e do livro didático, mas não sabia ler nem o primeiro nome, não conseguia ler o que escrevia, por mais que soubesse fazer cópias.

A escola passou Maria da alfabetização para a primeira série, mas como seu desenvolvimento cognitivo não acompanhava os demais alunos, Maria foi colocada na chamada classe de progressão e lá ficou sem saber ler nem escrever.

Maria era filha de pais separados, seu pai era diretor de palco de shows musicais e viajava muito pelo Brasil todo, mas era ele quem pagava minhas aulas e sempre entrava em contato comigo, para saber como estava a filha nos estudos. Maria morava com a mãe, que havia se casado com outro homem e tido outro filho, a mãe nunca me perguntava sobre a filha, mesmo estando tão perto.

Maria poderia estar estudando em outra escola, não estou desmerecendo a escola pública, mas o pai tinha condições financeiras para coloca-la em uma boa escola.

Mas o pai e a mãe tinham uma relação muito conturbada, o pai não confiava o dinheiro da pensão à mãe de Maria, ao invés disso ele vinha todo mês ao Rio de Janeiro, dava o dinheiro da pensão na mão da tia da mãe de Maria e me pagava em mãos, o pai de Maria morava no Rio de Janeiro e em São Paulo ao mesmo tempo, mas era quem mais dava atenção a Maria.

Sei que pode parecer que eu estava muito envolvida na situação para saber de tais fatos tão particulares e realmente estava e pude acompanhar esta situação durante muito tempo, pois fui professora particular de Maria, dos 7 aos 15 anos e só deixei Maria, após a morte subta de seu pai, já que a mãe não se interessava em me pagar para acompanhar Maria.

A relação de Maria com a mãe sempre foi difícil, pois a mãe construiu uma nova família, mas não incluiu Maria nesta nova família, deixando a menina com muitas questões psicológicas a serem resolvidas.

Maria era uma menina tinida, um pouco anti-social e fechada, mantinha um semblante um pouco triste, escrevia com letras minusculas e sua voz saia num tom muito baixo. Sua aparência era de desleixo, com cabelos embaraçados, roupas curtas e manchadas, sua aparência já contava um pouco da sua história familiar.


Ensinando e aprendendo com Maria:

Para ensinar Maria a ler tive que começar desde o inicio, sendo que este inicio era algo que para mim até então era desconhecido, pois eu sabia pouco sobre alfabetização, teria que pensar em estratégias para resolver este caso.

Pois observando melhor minha aluna, nem a parte motora dela era bem desenvolvida, já que tinha grande dificuldade de manuseio da tesoura, como ensinar a ler e escrever uma criança que tem uma dificuldade motora, sem falar em toda a sua problemática psicológica.

Como ensinar a ler e escrever a uma aluna que permanecia apática, algo que não é comum a nenhuma criança. A leitura e a escrita não tinham um sentido maior para ela, pois para que se comunicar com um mundo, ao qual se quer se esconder.

Maria não precisava se comunicar através da linguagem, seu corpo falava por ela e este pedia por socorro, o processo de aprendizado estava sendo muito duro para Maria, que por não querer se aproximar das outras pessoas, não querer se comunicar, tinha dificuldades de aprender. Pois como diz Vygotsky:

A palavra não foi o principio – a ação já existia antes dela; a palavra é o final do desenvolvimento, o coroamento da ação (Vygotsky,2005,p.190).

Sendo assim a leitura e a escrita tinham que ter um significado maior, tinham que fazer sentido, Maria precisava, antes de aprender a ler e escrever, querer se comunicar, querer estabelecer contato com as outras pessoas.

Para ensinar Maria era preciso ser flexível e rever meus conceitos, era preciso uma didática diferenciada, era preciso antes de mais nada chegar até ela. Pois como cita Kramer:

Não há apenas um eu e um meio que lhe é externo: a linguagem acontece porque há um nós. (Kramer, 2003,p.75).

Resolvi usar métodos lúdicos para ensinar Maria ler e escrever, era preciso que até mesmo a própria fala que é um processo de construção anterior ao ensino da leitura e escrita, fosse revista, já que a aluna possuia uma fala insegura.

Maria precisava de segurança, confiança, para se desenvolver, se soltar, pois ao que parecia ela estava presa, por conta de suas questões psicológicas.

Eu usei jogos com palavras, para ensinar ela a ler, fazia com que tudo parecesse uma brincadeira. Um dos jogos que eu costumava a fazer que Maria mais gostava era o caça palavras e palavras cruzadas, pois ela sempre via seu tio fazendo esses jogos, na revista de palavras cruzadas, isto despertou a curiosidade de Maria, que queria fazer o mesmo que o tio estava fazendo.

Outro jogo era juntar as palavras, com seus respectivos desenhos, como num dominó. Tinha um outro jogo que ela gostava, era de ligar as letras formando uma palavra.

No principio não me preocupei com a questão da escrita, pois ela sabia fazer cópias mecanicamente, mas minha preocupação era a leitura. Trabalhei também sobre o método silábico e fonético, pois ela se quer conhecia o alfabeto e o som das letras.

Mas através dos jogos ela e com muita calma e paciência, Maria foi aprendendo e conseguiu aprender a ler e escrever. Mas posso afirmar que foi um processo, não durou um ano. Maria estava lendo e escrevendo no fim da 2ª série.

Recapitulando, iniciei meu trabalho com ela quando ela estava na 1ª série, ou seja precisei de dois anos para ela aprender a ler e escrever, e ainda assim isso não tem muito significado, pois alfabetização é um processo que se carrega pelo decorrer da vida.

Explicando melhor, Maria mesmo lendo e escrevendo, tinha que passar por muitos outros obstáculos, teve que ler textos cada vez maiores e difíceis, tinha que elaborar respostas, interpretar, entender, o processo não se limita em saber ler e escrever, esse processo perdura durante a vida, é sua leitura pessoal de mundo, inicia ao nascer e perdura até a morte.

Acompanhei grande parte de um processo da vida de Maria e vi com meus olhos o resultado do meu trabalho, da minha paciência.

Vi uma menina que só sabia escrever seu primeiro nome, sem ao menos saber lê-lo, sentar do meu lado e me dar lissões de química. Vi o ditado se tornar realidade, o aluno superou o mestre e eu vi com meus próprios olhos.


Refletindo sobre o estudo de caso de Maria:

Ao se deparar com uma situação problemática, o exercício da reflexão se faz necessário. Este exercício da reflexão é feito por todo e qualquer ser humano, faz parte da sua natureza, tanto dentro de uma profissão, quanto fora dela, nas mais variadas esferas da vida humana.

não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que eu escolha entre isto e aquilo” (Freire, 1996:102).

O ato da reflexão na profissão do professor é muito importante, requer observar o cotidiano da sala de aula e a sociedade a sua volta. Requer uma tomada de decisão por parte deste professor.

Esta decisão se refere a sua prática e ao tipo de professor que se pretende ser, ou seja, se o professor quer estar “âncorado” a uma situação de comodismo, em que nada se realiza, ou se este quer lutar por uma mudança na sua prática.

Embora as dificuldades sejam muitas na profissão docente, o professor pode e deve, tomar uma decisão a respeito de sua prática pedagógica e esta decisão parte de uma reflexão critica a respeito de seu trabalho.

a reflexão critica sobre a pratica se torna uma exigência da relação Teoria/Pratica sem a qual a teoria pode ir virando blablablá e a pratica, ativismo” (Freire, 1996:22).

O conhecimento não é transmitido para o aluno, este deve ser construído no cotidiano, em um sistema de troca entre professor e aluno, pois quem ensina também aprende.

é neste sentido que ensinar não é transferir conhecimento, conteúdos nem formar a ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem dicencia, as duas se explicam e seus sujeitos apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém” (Freire, 1996:23).

Esta construção do conhecimento não se limita somente aos conteúdos do que esta sendo ensinado, esse conhecimento se refere ao pensar certo.

Este pensar certo, deve estar presente na profissão do professor, tanto no seu momento de reflexão, quanto em sua prática cotidiana, ou seja, quando este faz com que o aluno reflita criticamente sobre aquilo que esta aprendendo.

Olhando para o caso de Maria eu vejo que não só ensinei a menina a ler e escrever, mas aprendi muito com Maria. Aprendi que ser professor exige muito mais do que somente transmitir conteúdos, ser professor implica em uma ação, um comprometimento maior com o aluno.


Conclusão:

No caso de Maria, pode ver que a alfabetização não se limita a um ano letivo, ela é um processo continuo, que vem do próprio desenvolvimento humano.

O ensino da leitura e escrita não se sincretiza somente no papel, ele passa pelo corpo, pelo amadurecimento emocional e psicológico e continua durante toda vida, se entendermos que na vida fazemos leitura de mundo o tempo todo e que por mais que se aprenda, sempre existirão coisas novas há serem aprendidas.

Chegaremos a conclusão que vivemos em uma eterna aprendizagem e a leitura e a escrita devem ser algo natural dentro deste processo.


Bibliografia:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: ed. Paz e Terra, 34ª edição, 2006.

VYGOTSKY, Lev Semenovitch. Pensamento e palavra. In: VYGOSKY, Lev Semenovitch. Pensamento e linguagem. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Kramer, Sonia. Educação e linguagem. In: Kramer, Sonia. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 2003.

Soares, Magda. Letramento e Alfabetização: as muitas facetas. Trabalho apresentado no GT Alfabetização, Leitura e Escrita, durante a 26ª Reunião Anual da ANPED, realizada em Poços de Caldas, de 5 a 8 de Outubro de 2003.


Um comentário:

  1. É a 2ª vez q passo por este blog e, como as coisas são engraçadas, só fui dar atenção agora,pq resolvi assumir o q deixei lá atrás, dps de tantos anos. É gratificante a arte de ensinar. Parabéns pelo texto e pela sua luta q eu desconhecia.

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